21 de outubro de 2011

Rótulos

De tantos rótulos que a si mesma se deu, deixou de saber quem era.
A embalagem esqueceu quem sempre quis ser, por tanto ter sido. Deixou de futurar, imaginar, sonhar. Só recordava, pensava, recuava. Recuava num tempo de certezas certas, de construções que mais não são do que só isso, isso e só isso. Dizia (e sabia) que queria, que não queria, que sabia, nunca ia querer. E quis... (E deixou de saber).
"E agora?", pensava a garrafa, "sei o que vejo quando me olho, imagino o que vêem quando me olham."
E olhou-se. E, de repente, olhou-se e não se viu. Estava mudada, estava diferente. Não era mais transparente, como outrora, como sempre. Não era de cor nenhuma, não tinha cor, ou se tinha, não sabia que cor era. Olhava e não se sabia ver.
"Sempre fui transparente, sempre vi para lá de mim, deste meu corpo frágil, tão frágil, de vidro. Agora o vidro embaciou, qual nevoeiro, e juntou todas as cores que sabia e fez uma nova cor. É nova, estranha, outra. E eu sou outra. Não tenho cor. Tenho cor, mas não sei qual é. Por isso, não tenho cor. Ter é saber e eu não sei, não tenho. Não tenho, não sei, não sou."
Tentou limpar o nevoeiro. Era feio, ficava feia. Fazia do seu vidro brilhante e claro e puro e nítido e belo, uma nuvem que só esconder sabia. E limpou e limpou. E esfregou e esfrogou. Muito, pouco, nada. Desistiu.
Os rótulos com que sempre se rotulara estavam a descolar-se de si. Havia pedaços de uns, pedaços de outros e outros tinham mesmo já caído. Amálgama de passado, ausência de presente, tudo restos e resquícios de antes. Mas e agora? Que rótulo tinha? E agora? Que rótulo queria? E continuou a limpar e a esfregar e a limpar e a esfregar. Parou. Reparou que a nuvem estava igual. Reparou que ela estava diferente.
"Nódoa baça, sujidade da minha vidraça. Desaparece por favor", implorou a garrafa.
E a garrafa chorou. A nódoa não saía de si, a mancha não desaparecia e tudo o que queria era o ontem, quando era limpa. Sentia-se suja e não se conseguia limpar.
"Amigo, preciso de ti. Já olhaste para mim? O que vês?", interregou a uma garrafamiga
"Vejo-te a ti"
"Mas eu não vejo. O que vês?"
"Vejo o que sempre vi. Vejo o que vi ontem, antes de ontem e antes."
"Mas eu não vejo. O que vês?"
"Há quanto tempo não te vês? Olhas para ti todos os dias e nunca viste que estavas a mudar? És tu e já não és. És a mesma, mas diferente. Sempre diferente, a cada dia. Amanhã não sei o que vou ver, mas verei certamente o que vi hoje, ontem, antes de ontem e antes. Não chores, aceita. Olha-te, vê-te, respeita-te, agradece."

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